segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O TÍTULO E EU

Eu fui concebido nos longes de Angola, num despovoado que se chamava Cangamba, nos Luchazes. Era por aí que se marchava, a pé ou de tipóia mas não de jipe, para as ”terras do fim do mundo”, as do Cuando- Cubango. Julgo que ainda hoje as chamam assim. E assim também se chamavam então porque delas não havia notícia de gentes, apenas de animais, de chanas, lagoas e pântanos, até lá muito ao sul, ao Dirico, ao Mucusso, a Sambio e ao Cuangar.

Estes eram nomes que me lembravam cabeças de alfinete quando, anos depois, já no liceu, me punha a mirar o mapa de Angola pregado nas paredes da sala de aula e me espantava com a ousadia de terem plantado aqueles pedaços de casinhotos por cima da linha de fronteira do sul mais sul de Angola, assim a modos de que se desafiava, de peito feito, qualquer veleidade do Sudoeste Africano, a Namíbia de hoje.

Cangamba nada tinha de especial nesses idos de 1940, salvo reclamar-se como sede de uma das maiores circunscrições administrativas do distrito do Moxico, os Luchazes.Era uma área extensíssima e com uma densidade populacional das mais baixas dessa época. Aposto que ainda hoje é assim.

Havia quimbos e senzalas, claro, com gente negra que trabalhava: as mulheres na lavra dura dos campos, no amanho dos filhos às dúzias e na cozedura do pirão; os homens na caça, no desbaste de lenha e nas longas horas contando histórias da vida. Um despovoado igual a muitos outros que por essa época se espreguiçavam, isolados e esparsos, pelas terras vastas de Angola e se mantinham como que obscuros, atacados por uma sonolência tão estranha que até parecia provocada por mosca tsé-tsé.

Fui lá concebido, mas tive de ir nascer a centenas de quilómetros, à capital do Moxico, que era, e ainda é, a maior província de Angola. A capital era uma vilazita, então chamada Vila Luso, mas que para muitos era só Luena, o seu nome gentílico, histórico e infinitamente mais belo. E assim teve de acontecer pela simples razão de que por toda a lonjura dos Luchazes não existia um médico, um enfermeiro ou uma parteira para mulher branca -as mulheres negras, essas tinham os filhos nas suas palhotas do quimbo, acompanhadas pelas mais velhas e por isso mais experimentadas.

Claro que eu só soube disto mais tarde, quando, aos seis anos, tive de rumar, então de vez, ao Luena, para iniciar a escola primária. Nesta formigavam sobretudo meninas e meninos brancos, que eram malta com quem eu nunca tinha brincado até aí.

Nunca mais na minha vida, que já vai funda no outono dos anos, voltei aos Luchazes. E, todavia, é curioso como guardo algumas, é certo que soltas e esfumadas, recordações dessa época que se me esvai na memória mas perdura nas profundezas do pensamento.

A primeira tem a ver com o quimbo. O quimbo onde só vivia a gente negra, e que abraçava, a uns largos metros de distância, as duas isoladas casas em que moravam os únicos casais brancos do despovoado: os meus pais, por um lado, e um comerciante e sua mulher, por outro. De modo que eu fui, no inicio dessa década de quarenta, o quinto colonialista a irromper por aquele ignorado canto do leste angolano para lá assentar poiso por uns felizes seis anos.

 
Banho na varanda

Da minha casa só tenho a vaga ideia de que ela dispunha, ao belo estilo colonial, de uma larga varanda sem murete, que abria para o quimbo e, mais longe, para a floresta, lá a umas poucas dezenas de metros. O que nos separava do quimbo era terra batida, por vezes com capim que rapidamente minha mãe mandava desbastar por causa das cobras e de outra bicheza. A casa tinha cobertura a zinco, pelo menos nos primeiros tempos da minha vida. E por isso recordo também que fazia muito calor no tempo das chuvas, tantas vezes abundantes, torrenciais, de pingos grossos, e que as  chuvas faziam uma enorme barulheira a zurzir o tecto de zinco; ao contrário, no tempo do cacimbo, o ar era mais seco e a casa mais fresca, por vezes até fazia frio. Mas eu gostava de ouvir a chuva pausada a zurzir naquele tecto de zinco, pois me embalava em sonhos que sonhava acordado. É que em África, para se sonhar, é acordado que se deve faze-lo.

Lembro-me também de que à ilharga da casa ficava uma enorme capoeira, cuidadosamente amuralhada com estacas altas e de pontas bicudas por causa das hienas que, à noite, vinham rondar. Capoeira é uma forma de dizer, porque aquilo era mais parecido com um pequeno jardim zoológico aonde coabitavam patos e galinhas, porcos, coelhos e cabritos, também um par de faisões selvagens, e se plantava, no meio, uma gaiola descomunal com pombos, rolas e pássaros de todas as cores e de todos os tamanhos, que eu ficava a mirar, encantado, horas perdidas. Mas, na prática, a capoeira não passava de uma reserva para nos alimentar em permanência, um seguro de sobrevivência, pois naqueles recuados tempos não vinha de Luanda senão carne enlatada, quando vinha, e o peixe que se comia era o que se pescava nos rios, felizmente numerosos, que irrigavam os Luchazes: o Ricunda, o Chicalala, o Chilôlo e os outros afluentes do Cubangui; e o grande Cuando, mais além. Peixe de águas doces, portanto.

Só hoje consigo imaginar um pouco o que seria a vida de trabalheira de uma dona de casa, como minha Mãe, para alimentar a família em tempos como aqueles, em que praticamente nada vinha de fora, luz eléctrica não existia, por isso geleira também não, nem sei se haveria farinha para o pão ou se este seria de milho, como julgo mais provável. Mas estes não eram os efeitos da guerra, era o dia-a-dia normal. A guerra mundial era lá muito, muito longe, e claro que eu nem sabia que era a guerra a obrigar o meu Pai, à noite, depois do jantar, a agachar-se junto ao rádio de madeira e altifalante de pano rodado ao centro para tentar captar uns misteriosos ruídos de vozes esganiçadas. Era a Rádio Oficial de Angola ou, então, a BBC.

O quimbo não passava, sei lá, de uma quinzena de palhotas feitas de paus entrançados, umas, ou de argila, outras, todas com teto de colmo em forma de cone; e estava rodeado por uma cerca ou paliçada quase a toda a volta, assim como que para o resguardar de olhares estranhos. Não o resguardava, claro. E muito menos o resguardou quando, talvez pelos meus quatro ou cinco anos, me habituei a dele fazer uma segunda casa, sobretudo nos dias -e eram quase todos…- em que minha Mãe desistia, estafada, de me meter na boca, à força, a comida do almoço que tão carinhosamente me preparara. Irritada, fazia com os ombros um gesto cansado, de vencida: era o sinal, tão ansiosamente aguardado por mim, de que eu podia ir brincar lá para fora.

Não ia brincar, está-se a ver. Dava umas corridinhas ligeiras pela frente da casa; depois, como quem não quer a coisa, ia encaminhando-me para o quimbo e num esfregar de olhos entrava numa qualquer cubata de uma mamã negra, agachava-me, cruzava as pernas, e sem cerimónia atirava a mão para dentro da panela de barro, quentinha de funge, ou seja, pirão de mandioca. Porque era mesmo daquele pirão grosso, quente, um pouco amargo e sem qualquer condimento que eu gostava e por ele trocava os pitéus de minha Mãe.

Jamais mãe negra alguma me recusou uma vez que fosse essa partilha e Deus sabe como era escassa a comida no quimbo. Eu comia o pirão da panela com os filhos negros dessas mamãs, com elas e com os seus homens, pela única forma que os quimbos e as senzalas têm para partilhar: comunitariamente, em sossego, no meio de risos, de uma fala que eu não percebia, mas entendia perfeitamente que era uma fala de amizade, de doação, de gentileza. Depois, barriga saciada, voltava a sair do quimbo e caminhava direito a casa para a sesta obrigatória como se nada se houvesse passado.

Minha Mãe descobriu a marosca, talvez porque estranhamente eu ia engordando, não sei ao fim de quanto tempo. Mas soube gerir a situação com pulso firme e mão de veludo, pois lentamente eu comecei a trocar o pirão de funge por umas dedadas de um leite condensado cuja lata ela deixava nas bancas da cozinha. Era um leite condensado muito doce, espesso, que sabia bem quer às colheres, quer lambido com os cinco dedos da mão. Não o fazia sozinho a maior parte das vezes, porque havia sempre um “ puto do quimbo “ como companheiro da gulodice. E foi assim que um menino branco e meninos pretos não perceberam, na altura e para sua felicidade, que eram negros, ou brancos, ou mulatos. Eram só meninos.


Os meninos de Cangamba

Esse tempo de brincadeiras com os “putos do quimbo”, e outra garotada que não era branca, como que me corre ainda nas veias e deixa sulcos de imagens das mais poderosas e inesquecíveis que me ficaram de Angola. Foi o tempo da inocência, foi a época da felicidade da infância, o mundo que nunca mais voltará. Mas existiu.

Os “putos do quimbo” talvez não falassem muito bem o português, do mesmo modo que eu não sabia a língua dos luchaze ou dos ganguelas, o grupo étnico do Moxico. Não fazia mal algum, porque nos entendíamos às mil maravilhas por gestos, por olhares e por gargalhadas. Lembro-me bem de como foram eles que me introduziram pelas bordas do arvoredo adentro e por arvoredo quero dizer autêntica floresta africana, com árvores de porte alto e folhas que cantavam não sei que estranhas músicas.

Aprendi, então, o que era o mato e fiquei a ama-lo para sempre, tanto que ainda hoje, mais de sessenta anos volvidos, sou capaz de fechar os olhos e de vislumbrar as árvores de porte majestoso, umas, ou de tronco delgado, outras, sou capaz de escutar os sons das ramadas, das folhas e dos galhos a tombar, de entender, enfim, os ruídos próprios desse mundo que só estava à espera, como uma mulher, de ser penetrado. E aprendi, sobretudo, a cheirar o cheiro penetrante da floresta, tal como mais tarde haveria de aprender que Angola é terra de mil cheiros: o cheiro da terra vermelha, o cheiro dos quimbos, o cheiro dos rios e das anharas, o cheiro dos bichos e dos pássaros e do céu alaranjado, o cheiro das chuvas que inseminavam os campos ou que deslizavam, mornas, pela cara, o cheiro dos frutos tropicais, a manga, a papaia, o maboque. Acreditem que aquela terra é um festival de cores e de cheiros.

Mas não foram os cheiros que levaram os “putos do quimbo” a desafiar-me para o mato, é evidente. Aconteceu apenas que eu comecei a mirar-lhes as fisgas, a namorá-las, a segui-los como um cãozinho cada vez que decidiam ir atirar aos pássaros na floresta, ou às cabeças das cobras de água do riacho que por ali se derramava. Tempos depois, fartos de empréstimos temporários de fisga, que é objecto que um puto não deve nunca emprestar, deliberaram entre si e decidiram fazer-me uma, que me foi oferecida como quem diz: toma lá e não voltes a pedir as nossas. Não voltei a pedir.

A fisga era a minha maravilha, muito mais do que os brinquedos que vinham de Luanda, via Luena. Ensinaram-me a manejá-la, a fazer pontaria ao alvo, a saber esperar pelo momento azado para apanhar o pássaro distraído na árvore, nós mudos cá em baixo, e aprendi também a esticar ao máximo a borracha que lançava a pedra. Qual quê! Cada tentativa era um insucesso envergonhado, cada fisgadela um momento de risadas para os outros que, debalde, procuravam corrigir-me. Desistiram.

Fomos então ao tiro às latas enferrujadas, aos pedaços de garrafas, ao que quer que, mais volumoso do que corpo de passarinho ou cabecinha de cobra de água, servisse de alvo aceitável para a minha demonstrada imperícia. Ganhei mais experiência e já atingia com razoável pontaria tais alvos parados, sobretudo os montículos de salalé. Mas essa foi também a minha desgraça, porque os”putos do quimbo” começaram a desinteressar-se de tão insignificante conquista e retomaram o rumo do mato, que eu não quis refazer, seguramente para não me sujeitar ao desafio da comparação.

Não imaginaria então, certamente, o enorme sarilho em que me iria meter, mas o certo é que me enfastiei de atirar sozinho àqueles alvos tão miseráveis para uma bela fisga como a minha. Devo ter matutado, se é que um garoto daquela idade consegue isso, na triste figura que andava a fazer aos olhos dos meus companheiros negros do quimbo, eles que não tinham sapatos nem sandálias, excepto um que outro que possuía tiras de borracha a servir de sola para os pés.

Já não me recordo como, mas um dia surgiu-me a solução luminosa: o galinheiro da minha Mãe. Claro que era uma solução arriscada, porque eu sabia que só podia entrar no galinheiro com prévia autorização, por causa das pulgas da bicharada. Mas não deixava de ser uma saída airosa para o meu embaraço: eu haveria de demonstrar aos do quimbo que também sabia assestar em alvo andante.

E assim foi. O galinheiro tinha uma extensão considerável e não era tão difícil como isso passar desapercebido lá dentro, sobretudo se me agachasse e ficasse mais ou menos quieto, para que a bicharada não começasse a grasnar. Foi o que procurei fazer nas primeiras surtidas.

Não passaram muitos dias, porém, sem que o instinto não levasse a melhor, quer dizer, sem que não resistisse a metralhar as asas das galinhas com pedradas das boas, daquelas que silvavam e depois faziam “pum” ao bater no lombo das desgraçadas. As desgraçadas reagiam de modo natural, ou seja, desatavam a cacarejar como doidas, começavam a tropeçar aos tombos, feridas, e acabavam por alvoroçar o galinheiro inteiro.

Fui apanhado pela minha Mãe num esfregar de olhos e interrogado sobre a propriedade da fisga. Devo ter batido com a língua nos dentes, ainda que sem identificar qualquer dos nomes da malta do quimbo, o que os salvou. Mas não me salvaram de ver a fisga apreendida por longo tempo e de apanhar uns bons tabefes no traseiro. Nunca dei conta que, por causa deles, tivesse ficado um traumatizado para toda a vida…E muito menos quando logo percebi que as duas ou três galinhas mais maltratadas, quase moribundas, iam à faca do cozinheiro. Transformaram-se em canjas deliciosas, que eu saboreava muito melhor do que aquelas sopas grossas com que minha Mãe me martirizava.

A segunda mais impressiva recordação do quimbo advém-me da figura do “sécúlo”, ou “o mais velho”, quer dizer, o chefe da aldeia. Era o escolhido do seu povo pela sua idade, que significava experiência e saber de vida. E em regra eram reconhecidos e desejados também pelas autoridades administrativas portuguesas, por neles encontrarem um interlocutor útil e insubstituível.

O “sécúlo” do quimbo de Cangamba era um velho muito velho, de idade indecifrável. De estatura meã, franzino de tal modo que os ossos lhe despontavam por sob toda a pele do corpo, de carapinha já um pouco esbranquiçada, distinguia-se estranhamente por um porte que não era altivo mas era tão direito quanto a idade lho permitia, por um ar sereno e ao mesmo tempo como que magoado, por uma dignidade indisfarçável. Tinha uns olhinhos metidos bem lá no fundo da cara, mas eram uns olhos negros, miúdos, por vezes parece que me sorriam, por vezes parece que se quedavam distantes a olhar, lá longe, um outro horizonte.

Não sei que nome tinha. Meu Pai, esse sabia-o, porque não poucas vezes os vi a conversar à varanda, ou lá na zona do fundo da casa que servia de repartição administrativa, enquanto se erguia o edifício futuro, que seria de tijolo e telha. Falavam através de um intérprete porque poucas palavras de ganguela o meu Pai dominava, apenas aquelas poucas que serviam para meter conversa, perguntar pela saúde ou saber do estado das culturas.

E em regra era mesmo a questão das culturas, o desaparecimento de gado e, portanto, a situação de fome ou a de saúde dos povos do quimbo o principal motivo dessas conversas, como mais tarde me explicaria meu Pai.

Era muito difícil, então, encontrar-se solução adequada para a substituição dos métodos tradicionais de cultivo praticados pelas gentes do quimbo, o puro trabalho muscular pela enxada, e explicar-se que as terras mereciam pousio sob pena de inevitável degradação. Bastava um ano de chuva torrencial ou de sol ardente para que tudo se perdesse. E daí à fome era um ai.

O gado, que não era abundante-umas vacas raras, uns cabritos e galinhas- era frequentemente atacado pelos predadores do costume: as cobras, as hienas, por vezes o leão, queixava-se o chefe da aldeia. Menos gado, ou criação a menos, significam também mais fome, está-se a ver.

E finalmente, mas não menos grave, existiam as doenças clássicas, como o paludismo, à cabeça, a doença do sono que, nessa altura, não tinha ainda ataque sistematizado, a lepra, e também os golpes mais fundos no corpo, causados pelo uso errado das catanas ou das enxadas. Era por essas ocasiões que a conversa entre meu Pai e o velho “sécúlo” do quimbo terminava com as soluções possíveis: mandava-se retirar do armazém sacos de milho, distribuía-se fuba e algum arroz, e minha Mãe era mandada ao armário de nossa casa buscar os frascos de quinino para atacar o paludismo, ou alguma gaze e tintura de iodo para limpar as feridas das lâminas da catana.

Em situações mais delicadas, meu Pai autorizava a distribuição de uma meia dúzia de canhângulos, velhas espingardas que já não tinham memória do tempo do seu nascimento, mas que seriam capazes de disparar sobre javalis, gazelas e mesmo impalas-- carne para comer--, umas duas ou três vezes em cada dez disparos. Os homens do quimbo percebiam o gesto de confiança, pois nunca vi meu Pai com uma arma na mão, sequer uma simples caçadeira para andar às perdizes. E retribuíam, porque nessas ocasiões, regressados da caça e devolvidas as armas, havia festa no quimbo noite adentro, com cantares e dançares, as palmas das mãos marcando o ritmo dolente da música, as ancas das mulheres requebrando em direcção aos corpos dos homens, numa calucula que mais tarde me soaria parecida com as rebitas da cidade. Era então que os mais velhos ficavam sentados ao redor das fogueiras, a beber marufo e a fumar nas suas mutopas e contavam as estórias de caçadas antigas, fabulosas, daquelas que não mais se repetiriam porque já não havia tanta caça e porque os jovens do quimbo tinham perdido o gosto da aventura de calcorrear matos e montes, galgar rios e penetrar até ao fundo dos fundos da floresta.

Numa dessas ocasiões, por gentileza, trouxeram-me uma bambi cuja mãe fora morta na caçada. A pequenina gazela mal se sustinha nas esguias e muito frágeis pernas, tinha o focinho húmido e uma pele castanha, quase sedosa, que apetecia cheirar. Para mim foi amor à primeira.

Minha Mãe ocupou-se dedicadamente da bambi, porque percebeu o que eu não podia perceber: que a bambi, sem a mãe e com tão poucos dias, corria risco de vida. Alimentou-a a leite, com os meus mais velhos biberões, entrapou-a em pedaços de manta à noite, deixava-me pegar-lhe ao colo e tenho uma vaga ideia de que até sulfamidas lhe dissolveu no leite, não sei para quê. Tudo foi em vão, porque uma certa manhã veio dizer-me que a bambi tinha morrido e a tinham enterrado no quintal, lá para os lados do quimbo. Ainda hoje tenho a certeza de que esse foi o primeiro grande desgosto da minha vida e recordo-me de ter chorado desalmadamente.

Se há coisa, porém, que rapidamente cura desgostos é precisamente essa idade da meninice. Os “putos do quimbo” em breve estavam de volta, agora traziam a última maravilha: um carro feito de canas de bambu, com um enorme guiador, que não passava de um longo e estreito pau que servia para o mover. Nunca consegui entender de onde vinha a vocação daquela malta do quimbo para estas coisas, mas a verdade é que a possuíam. E foi assim que a vida rapidamente retomou o seu ritmo ronceiro e venturoso.

Aos seis anos, como já contei, abalei de vez dos Luchazes para o Luena. Aos tempos de felicidade que tinha vivido, outros tempos de felicidade, diferente embora, se foram seguindo. Mas nunca mais esqueci Cangamba, os putos do quimbo e o mais velho de todos, aquele chefe negro a quem cabia defender o seu povo, escutar as queixas da aldeia, arbitrar disputas, pacificar, buscar comida que matasse a fome aos seus. Ele era o mais velho, o que tinha o papel a que nós, portugueses, chamaríamos de “ouvidor”, porque ouvia o povo e julgava as causas.

É verdade que a palavra “ouvidor”, que se usava em Portugal no tempo dos nossos reis, caiu entre nós em desuso. Ironia do destino, foi mantida no Brasil, que a usou também na época dos capitães--donatários, a preservou e dela faz, hoje, a nível federal ou a nível estatal, no sector público tanto como no privado, um uso extensíssimo. Malhas que o Império teceu…

O “Ouvidor do quimbo” é, assim, um título de simbiose, pois advém quer de Portugal, que é minha Pátria, quer de Angola, que é a minha Terra. Pretende ser um blogue de memórias e de saudades, de poesia, de estórias e de comentários, incluindo comentários políticos, os melhores para a gente se rir. Será também uma forma de deixar aos meus treze netos um rasto meu, porque, pela ordem natural das coisas, sobretudo os mais pequenos é provável que dele nada retenham.

No mais, caro caminhante de passagem por aqui, nunca se esqueça daquele provérbio saloio que diz assim: ”se não gostas do que lês, pois não leias”; ou, se preferir um provérbio ganguela, então escute este:”um homem não é um jacaré. Um jacaré não é um homem. Mas o jacaré come o homem”.